30.4.18

Até ao arco-íris mais belo



À memória da Filipa Barata (1981-2014)


Há outra linguagem
presa às arestas do destino.
Linguagem impressa
nas pedras que se pisam
e onde se inscrevem
para sempre todas as quedas,
todos os recomeços,
todas as memórias.
É uma linguagem sem margens
que abrasa a existência,
contamina a fragilidade das mãos
e atrai as aves fatigadas,
no infinito de seu voo,
até ao arco-íris mais belo.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

23.4.18

LEMBRAR ABRIL



ATÉ SER OUTRO DIA

Mesmo que nos queiram
roubar a luz
não conseguirão
amordaçar a voz
que rebenta no chão
em flor 
às mãos cheias

Abril respira a céu aberto
contra nevoeiros
mares desgrenhados
e outros destinos

Ainda há crianças a plantar cravos
no coração das aves

a levar o pão
à boca das sementes

até ser outro dia

Eufrázio Filipe
In: Chão de marés: colectânea de poesia 2013-2016. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2017, p. 11

16.4.18

Dedie

Amedeo Modigliani


Abri a janela para a manhã
que despontava e descobri
uma andorinha sobre o parapeito.
Uma leve suspeita de ausência
percorreu o meu olhar. 

Talvez, entre as minhas mãos,
sobrepostas, apenas uma intuição
imprecisa se demore.
Talvez a névoa que flutua sobre as papoilas
esconda as estrelas
que ficaram presas no pulso da noite.

Dentro de meus olhos um mar sem limite.

Um cais é apenas a pedra que projecta
a intermitência dos barcos no coração.

Tão breve a luz na idade do rosto!

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 33

9.4.18

Em uníssono


Moises Saman

Indagamos, em uníssono, o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.
Graça Pires
In: CONTINUUM: Antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 123