28.12.08

Mãesagem


É possível que as arestas das montanhas
se arredondem de paixão pelo brilho da seiva,
quando a manhã se acende.
É possível que revoadas de pássaros
sulquem o céu, reinventando uma terra,
maternal e verde.
É possível.
Pode ser um recomeço,
uma promessa, um sobressalto,
um sinal da nossa inquietação,
neste planeta quase estrangulado,
em que nos vamos tornando forasteiros
assustados, não vá a morte surpreender-nos
na fronteira de qualquer negligência.
Pronunciemos, devagar, um acto de contrição,
até que a luz penetre, nua, o útero da paisagem,
e a fecunde, ou não teremos rio algum
que purifique a nossa sede.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996


Mãesagem é o nome de uma escultura de João Cutileiro

19.12.08

Em seara alheia

O Natal

Fotografia de Gisela Ramos Rosa: António Ramos Rosa a desenhar, Novembro de 2008


O campo que desdobro e rodopio é um corpo
que do meu corpo nasce, que do meu campo solto
António Ramos Rosa, Campo e Corpo

Nascerei sempre
que a palavra vier ter comigo
como a paisagem de uma manhã de
Natal
mesmo quando as pedras sem cor
me conduzirem por entre as calhas
e no horizonte só os barcos ausentes navegarem

nascerei sempre que as palavras amanhecerem
como fogueiras vermelhas de presença
e a tua voz incendiar o silêncio

ainda que minhas mãos
nem sempre encontrem uma janela
mas muros que crescem mesmo quando derrubados

mas nascerei, nascerei sempre que
na palavra encontrar o teu rosto


Gisela Ramos Rosa

07-12-08
Desejo a todos um Natal cheio de Amor e Luz...

12.12.08

Por onde se volta à infância

Inês Gonçalves

Que cilada flutua sobre a espuma
da língua enrolada em vocábulos?
Com que voz se rompe o centro da desordem,
para deixar passar o poema,
ansioso de uma rua larga?
No lugar em que os rios se cruzam
com os olhos dos poetas,
rodopia o tempo de uma fábula,
por onde se volta à infância,
com a noite dilatada nos olhos
e a boca legendada de contos de fada.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.12.08

Memórias de Dulcineia X

Degas

De tão longe me tocaste.
Ou foi a tua sombra
que dançou
na minha sombra?
Podia ser de júbilo
a linha do teu rosto
quando soletraste
a rebeldia dos sonhos
e te fizeste errante.
Agora o sonho
é também o meu exílio.
E muito mais me perturba
o luto do olhar
do que a boca
ferida de silêncio.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.12.08

Da tua ausência

Rachel Giese

Voltarei sempre às paisagens da tua sombra
enfeitada de madressilvas.
Gravarei o teu nome em todas as árvores,
sem marginalizar as razões da tua ausência.
Cantarei palavras sem espessura,
como moinhos de vento,
ou o frágil sabor da chuva.
Dançarei contigo na periferia da manhã
e direi onde começa e acaba
o secreto destino do silêncio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

30.11.08

Em seara alheia



UM POEMA

Não tenhas medo, ouve:
É um poema.
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...


Miguel Torga
In: Diário XIII. Coimbra, 1983

26.11.08

O lugar interior

Mark Rothko

Queria descrever, ao pormenor,
o lugar interior onde o poema recomeça
o seu esboço de contornos invisíveis,
rodeando os pulsos.
A língua, distorcida pelo súbito tumulto
da água, engolindo a sede,
agrafa de gritos minha boca.
As letras enrolam-se-me na saliva,
como um choro, que torna sombrias
todas as definições de paixão.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

22.11.08

A casa


A minha irmã a trouxe: a foto da casa onde nasci,
como se fora uma gaivota de névoa.
Agora, a casa respira a meias com o longe
que nos separa da infância. As suas raízes
sobrevoam, tão cúmplices, tão subtis,
os nossos corações atordoados de menina.
Do fundo da tarde adivinhamos, sei lá,
o sótão pintado de pretéritas inocências,
a janelinha por onde as bolas de sabão
nos levavam, em estado de sonho,
por lugares que só o imaginário sabe.
Onde está o retrato do medo,
que sabíamos de cor, mesmo sem o olhar?
Onde está a outra menina
que connosco partilhava os frutos
de todas as estações e a quem,
também, chamávamos irmã?
Em vão, esperar a mais perfeita lágrima
para, em nome da sua ausência,
reconstruirmos a casa.


Graça Pires
De Ortografia do Olhar, 1996

17.11.08

Por dentro da noite

Magritte
As mulheres, de passo
travado de amargura,
espreitam no escuro
uma emoção perdida.
Na sua frente, a noite resolve
todos os problemas de ódio,
ou todos os equívocos
que lhes pesavam nas ancas,
impedindo-as de dançar.
Boca a boca se respira
um erotismo deslumbrante.
Há um mundo sensual
debaixo dos seus pés.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.11.08

Regresso

Claude Simon


Sacodes do corpo a poeira do exílio.
Os destroços de uma agonia,
duplamente perigosa, incharam-te nos pés.
Vem. Dir-te-ei o que mudou
neste lugar de ventos e de mastros.
Dir-te-ei como me senti intrusa,
sempre que um navio aportou neste cais.
São sombras familiares, as que precedem
o teu anonimato. Um cortejo de pássaros,
antecipa-te o regresso. E chegarás
cansado do rumor da morte,
que na boca dos deuses se ocultava.

De Uma certa forma de errância, 2003

10.11.08

Memórias de Dulcineia IX

Darlene Shiels


Há crisântemos
ao longo das estradas.
Um chão orvalhado
rebenta-me nos olhos.
Eu sei: não há lembrança
que o tempo não apague,
nem dor que a morte não consuma.

Por isso, vai perdendo sentido
a distância que me separa
de todas as esperas.
É mais nítido, agora,
o silêncio que me envolve.
Como se a morte
(ou apenas o pressentimento dela)
viesse, de mansinho, ao meu encontro.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

6.11.08

Em seara alheia



DERAM-ME O NOME


Deram-me o nome
da mãe
da avó
e de outras ancestrais que não conheci

a avó fez jus ao nome
e de Andaluzia onde foi menina
trouxe a espantosa solidão
da cama desabitada
dos filhos todos
perdidos
na guerra

a mãe foi artesã
da alegria
(da minha não da sua)
e passou breve
cisne ao sol
sacrificado

e agora
eu herança
no longe dos seus olhos.

Soledade Santos
Aqui
In: Quatro Poetas na Net. Maia: Sete Sílabas, 2002

3.11.08

Irremediavelmente

Alfredo Cunha

Talvez não valha a pena
amarfanhar palavras
para fugir do medo.
A vida não é um jogo.
É uma espécie de nudez,
onde se perde o pé,
irremediavelmente.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

30.10.08

Quem me disse?

Marco Somoni

Encostada às paredes interditas do futuro,
vou desenhando as memórias do caos
em que me escrevo, neste cansaço de pedra.
Como um exorcismo inadiável, tudo
o que aceitei sem reservas percorreu
a cor evasiva dos contrastes
que, nos meus joelhos descuidados,
linearmente se desfizeram.
A caminho de todas as fragilidades,
os fantasmas do amor acotovelam-se
na minha voz, condenados a um sonho
mudo, gravando no silêncio o eco
dos abraços que não deram.
E vêm todos calados, como se a morte
das palavras tivesse acontecido.
Quem me disse que nunca tinha fim
o tempo dos desejos?

Graça Pires
De Outono: lugar fágil, 1993

27.10.08

Inventar nascentes

Cartier-Bresson

A minha profissão era inventar nascentes.
Eu nada sabia da ressonância das ondas,
até que fiz dos sonhos um alibi
e arrisquei qualquer fuga,
com a manhã rebentada no peito.
Indiferente à respiração dos peixes,
sigo Ícaro até às profundas águas
de um amor em fogo,
enquanto me crescem, na garganta,
as raízes do delírio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

26.10.08

PRÉMIO


Este prémio foi uma gentileza das Amigas e Amigos de:
Agradeço muito sensibilizada e ofereço o Prémio a todos os que visitam o "Ortografia do Olhar" e principalmente aos que gostam da minha poesia.

23.10.08

Memórias de Dulcineia VIII

Balthus
Repito as palavras.
Lentamente as pronuncio.
Tão límpidas que me dói dizê-las:
Ela batalha em mim
e vence em mim
e eu vivo e respiro nela.

Guardo as palavras,
secretamente,
como quem esconde,
com pudor, o lado
mais sensual do corpo.
Guardo as palavras.
Assombro-me com elas.
E choro a meio da noite
com os olhos carregados
de inocência.
Como se fora uma criança.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

20.10.08

Em seara alheia


tinha a sopa a arrefecer e a mãe chamava.
tremiam-me as pernas no complicado anseio
de saber se ela estava. já não me lembrava do nome.
rosalina seria. era quase um instante quando o lençol
era aconchegado no pescoço. eu não sabia.
poderia ser maria ou carmo ou antónia.
mas não. acho que era rosalina e de mãos atadas
no silêncio da mesa, eu achava que era morna
a lembrança. sabia que o momento não era próprio.
e eu ainda com as meias até ao joelho
e uma fita nos cabelos. descia a mão
até ao princípio do dia.
e a luz chegava para cegar de medo o meu sono.
e os dedos aconchegavam as pernas.
e as mãos no destino húmido do desejo.

Maria Quintans
aqui
In: Apoplexia da ideia, il. João Concha. Lisboa: Papiro, 2008

16.10.08

Sabor a romãs

Manuel Fazenda Lourenço

Fico à entrada do outono cativa de hábitos estivais.
A palidez do sol arde nos beijos dos adolescentes
e tem um acentuado sabor a romãs.
Apetece cantar até à extenuante cor
dos campos lavrados e nenhum calendário
mudará o clima que os meus olhos reclamam.
Sei hoje que o amor e a morte são a matéria
preferida dos que pernoitam debaixo
de roseiras bravas e sabem
que tanto as garças como os papagaios de papel
voam sempre mais alto no outono.
Vou no vértice desses bandos
numa migração de risos transparentes.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

13.10.08

Alguns apontamentos

Paul Strand


Antes que a memória me apanhe desprevenida,
tomo alguns apontamentos de lavoura:
os cestos de vime escondem os sobressaltos
do vento de outono, no meio do azinho
cortado no verão;
os sulcos de trigo inquietam-se
com as chuvas estivais, quando os guizos
das cabras soam de nordeste;
um temporal pode explodir no bico dos melros,
se o tempo das cerejas sair do calendário,
ou o sol não brilhar no mês de março;
na próxima floração acenderemos o forno
e o pão que comermos será caseiro.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

9.10.08

É possível

António Carneiro

É possível que já não haja pássaros
a esvoaçar em torno das palavras
com que calei
o desespero das manhãs
quando tinha do cosmos
uma visão romântica.
Hoje nasce-me no olhar
uma luz quase cruel
com que ilumino
a linha de sombra
que me cerca as mãos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

6.10.08

A cidade

André Kertész

A cidade designa-se pelo desassossego
impregnado de histórias errantes.
Multidão anónima, individual, insondável.
Geografia de uma orfandade interior.
Paradoxal labirinto de aves migratórias.
Nenhum caminhante se esquiva à nitidez
da noite sitiada pela própria sombra.
Pé ante pé, a intimidade refugia-se
nos olhares povoados de afeição
e desdiz o rumor do medo
com um gesto de aconchegar palavras.
A cidade é o epicentro de uma confidência
partilhada por quem sabe manipular o silêncio.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

2.10.08

Em seara alheia



ARCANO

As altíssimas torres
foram trespassadas por pássaros
alucinados. Um deus ofendido
pelos povos terem inventado
os dicionários, para fugir
ao castigo de Babel,
fez explodir essas formas
de arranhar o céu, sacrificando
milhares de vítimas. Algumas lançaram-se
das alturas, na fuga às chamas
para a enganosa respiração
da manhã. Consta que deus,
disfarçado de mortal
se escondeu nas montanhas.

Inês Lourenço
In: A Enganosa Respiração da Manhã. Porto: Asa, 2002

29.9.08

Memórias de Dulcineia VII

Goya

Quero que me devolvam o meu riso.
Inocente ou perverso, pertence-me.
Ouço-o, ainda, pela infância
fora quando ecoa na remota
memória da alegria.
Ouço-o na hora
de desocultar segredos,
golpeando palavras
ou inesperados silêncios.
Ouço-o, mesmo sabendo
que já não é possível
forjar, na voz, o breve instante
que vai do espanto
à original pureza do olhar.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

25.9.08

À míngua de um abraço

Henri Cartier-Bresson

Como por aqui se afirma os rouxinóis saltitam
de árvore em árvore com medo da morte
dissimulada nos ramos das figueiras mais estéreis.
Persigno-me ajoelhada no restolho entretecido
pela meia-luz do poente.
A fonte que me atravessa a boca
confina, agora, com a mágoa das mulheres
que, à míngua de um abraço, envelheceram.


Graça Pires
De Quando as estevas entaram no poema, 2005

22.9.08

Reencontro com o Outono

Gérard Castello Lopes

Reencontro-me com o estado primitivo
do outono e deixo-me seduzir
pelo paradoxal destino das gaivotas.
Dentro das minhas mãos ávidas de ter
encalham navios vindos de todos os mares.
Depois exibo nos pulsos as marcas
de naufrágios inexplicáveis
enquanto percorro um cenário vazio
no mutismo de árvores que se despem
lentamente com o sopro magoado do poente.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

18.9.08

Apesar da sede

Picasso
Tudo podia ser mais simples.
Mas a infância fica tão longe
e os espelhos começaram
a gritar-me uma inocência
que deixou de ser minha
para sempre.
O que quero dizer
acompanha, devagar,
o movimento do sol.
E são cada vez mais lentos
os passos que me levam
na direcção das nascentes.
Apesar da sede.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

15.9.08

Em nome do teu nome

Alvarez Bravo

Em nome do teu nome, invoco o sul do silêncio
e arrimo o corpo ao vagar dos teus dedos.
Depois, deixo que me invadas, poro a poro,
que me cerques, me sacies e que a luz ilícita
dos teus olhos me ajuste ao teu abraço.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

12.9.08

Em seara alheia



Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor, que te procuram.

Herberto HelderIn: Ou o poema contínuo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

8.9.08

Memórias de Dulcineia VI


Não vislumbro
qualquer sinal de enleio
nos meus ombros.
Ao longe envelhecem,
em mim, as planícies
cobertas de giestas.
E lembro os dias
em que ouvia falar
de um homem:
quase um peregrino,
quase um nómada,
quase um louco.
Um homem deambulando
no rumo dos animais bravios
que povoavam sua mente.
Uma vasta mancha de sonhos
me perturbou para sempre.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.9.08

Nenhum tumulto

Rachel Giese
Nenhum tumulto denuncia a hesitação
das mãos colhendo os frutos.
Apenas o restolhar das folhas
no extremo do estio, chora,
em surdina, a privação do sumo
e da polpa, no bico dos pássaros.

De Quando as estevas entraram no poema, 2005

2.9.08

Penélope


A pouco e pouco, aloja-se-me
no coração a cicatriz da espera.
Alheio-me da minha cronologia
porque o passado se tornou permanente.
Caminho tão perto do mar,
que Ulisses avalia a direcção
do vento pelos vestígios
do meu respirar, lento ou apressado.

De Uma certa forma de errância, 2003

29.8.08

Neles me reconheço

Menez

Quando identifico os passos
dos que vagueiam sem endereço
e neles me reconheço
entendo por que há aves que cegam
com a transparência do orvalho.

De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

26.8.08

Em seara alheia


Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência.E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do teu chão.

Daniel Faria
In: Poesia. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003

22.8.08

Ariadne


Ariadne nada sabia da morte.
Quis ter a eterna idade das águas.
Naxos foi o exílio
onde levou aos olhos a curva do luto.
Sobre as rochas desabou a noite,
impregnada de paixões.
E o silêncio a chamou de muito longe.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

18.8.08

Poema de amor

Manuel Fazenda Lourenço

Enquanto os meus passos procuram
nos teus a ressonância da alegria
e ambos reconhecemos a luz fascinada
do olhar, dá-me a tua mão.
O nosso caminho não é a tristeza,
nem a raiva, nem o medo.
O rio conhece-nos a voz
porque transportamos no coração
pássaros em chamas e vagueamos lado
a lado, sem tempo, sem idade.
Um desvio de malícia denuncia
a suspeita cumplicidade da brisa
que nos brinca no rosto.
Uma densa névoa lambe,
tumultuada, a pele da noite,
Ao amanhecer, quase inesperadamente,
far-se-à verão em nossas bocas.
O teu nome e o meu nome serão frutos
de esperma e saliva presos à língua.
Os teus olhos : inquietos,
deslumbrados, transparentes.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

14.8.08

Na data prevista

Maurício Abreu

Na data prevista, agosto arde
e nem sequer uma sombra indaga
a desolação da terra nos montados.
Os pássaros trancam o verão em suas asas,
acenando à luz coalhada das nascentes.
Um sorriso, ajustado ao abandono,
envelhece nos olhos das crianças.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

11.8.08

Memórias de Dulcineia V

Alvarez Bravo


Ponho nestas memórias
a íntima clandestinidade
dos amantes.
Hei-de dizer o nome
de quantas aves se perderam
por roçarem o vazio da noite
em vagaroso voo.
Hei-de ocultar a cara
próximo de uma fonte,
para colar a boca
ao trilho das chuvas.
Hei-de cercar com águas
nocturnas o lume dos seios.
Depois, sei que vou estremecer de aflição,
quando o ranger das portas se confundir
com o chamamento da tristeza.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.8.08

Se viesse do mar

Maicar Förlag
Se viesse do mar o silêncio
transparente desta mágoa,
eu podia desenhar
um barco para fugir,
ou esperar que a maré
levasse a água
que outras sedes me trouxeram.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

4.8.08

Em seara alheia


Franz von Suppe:
Poeta e Camponês

A jovem camponesa que faz versos.
Não os passa ao papel porque não sabe escrever,
mas diz que os preserva em cada árvore que vê,
e na chuva que cai,
e no sol que se põe.
Uma pequena erva pode ser um poema,
ou a água que corre no leito de um ribeiro
onde uma luz se esconde ou uma sombra vibra.

Como cuidar da imperfeição
senão sofrendo pelo que é perfeito?

Às vezes – diz ela -, passa-me pela cabeça
uma onda de música que não tem lugar
e eu sei pertencer a um mistério sem nome
que dói no coração muito devagar.

Amadeu Baptista
In: O bosque cintilante, Maia: Cosmorama, 2008

30.7.08

Do lado do rio

Carlos Botelho

Escrevo trovas no vértice de uma dança.
Sulco toadas, verso a verso,
no eixo dos meus pés.
A manhã começa do lado do rio.
Imperceptível. Tangível ao fascínio.
Olho os outros com a ritualidade
de quem permuta o sorriso e o risco de viver.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

25.7.08

Memórias de Dulcineia IV

Vermeer
Indecisa, seguro entre as mãos
a carta que um dia recebi:
sem remetente, sem data,
sem perfume.
Com uma haste de fogo
a queimar-me as pálpebras,
eu leio:
dia da minha noite,
prazer da minha mágoa,
norte dos meus caminhos,
estrela da minha ventura.

Os meus lábios, lentamente,
tocando as letras, lambendo
o sonho impresso no papel.
Um aroma de jasmim
devassando o ar.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

21.7.08

O mais secreto brilho do verão

Rachel Giese


Acordei assustada: tinha cortado
os pulsos para matar a sede.
Agora que a sede sangra nos meus lábios,
devoro, gota a gota, o hálito da terra,
ou o cheiro dos morangos,
ou, apenas, o sangue das palavras.
E arrasto o dia pelas sombras,
bebendo, devagar, o mais secreto
brilho do verão.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

16.7.08

Memórias de Dulcineia III



Quando fui ao teu encontro
levei no decote
um rebento de alecrim
para que me avistasses
pelo aroma.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

12.7.08

Em seara alheia



Nau de sonho

Quase roçando a areia, tão beijada
pelas ondas do mar, serenamente,
à luz avermelhada e fulva do poente,
eu paro... passa a minha nau doirada.

É nau forte a errar no mar fulgente,
coberta de luzes a amurada...
Pelo sopro das ondas embalada
parece o amor no coração da gente.

É nau de sonhos, um sonho enorme em flor,
buscando as horas mágicas de cor
em que o sol morre e sente-se a verdade.

Oh minha nau doirada espera um pouco
levas ao leme um timoneiro louco
e fica meu coração doendo de saudade.

Otília Martel
In: Menina Marota : um desnudar de alma. Lisboa, Papiro, 2008

7.7.08

Um rio nasce perto dos lábios

Edouard Boubat


Um rio nasce perto dos lábios
de quem improvisa a sede,
ou sabe usar as mãos para colher
as primeiras amoras do verão.
Às vezes, os frutos derretem-se
na boca, queimando a língua de prazer.
É assim que os amantes se redimem
de consentidos silêncios.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

3.7.08

Retrato improvisado

Picasso

Por dentro da tua voz, posso adivinhar
a cidade longínqua que te perturba o rosto.
Vieste de todos os lugares onde as emoções
se expõem do lado da desordem,
e chegaste com os pássaros transparentes
que, agora, repousam nos teus olhos:
água ou mágoa, a juntar os pedaços da tua sombra,
repartida por quantos silêncios te cercaram?
Não. Não te ausentes ainda.
Deixa-me reaver todo o júbilo das mãos,
na curva do teu peito, onde vejo uma pátria
cor de trigo, que me aquieta o corpo.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

30.6.08

Em seara alheia

QUE FORMALISMO?

De lamber as palavras como se
rasas de silêncio elas fingissem
e não se trucidassem contra o vento
e não voassem fundo
e não ferissem?

De afagar as palavras como se
um aguçado arame não
nos arranhasse
e não despisse em nós
a veste que se cola,
a casca da aparência?

De alisar as palavras como se
não fosse duro e fundo
o solo de onde partiram
e o lancinante grito
que lá mora?

É sempre um homem que
por elas fala,
é sempre um coração
que aí adeja!

João Rui de Sousa
In: Quarteto para as próximas chuvas. Lisboa: Dom Quixote, 2008

26.6.08

É um verso

Claude Monet


É um verso, toda a luz filtrada pelo olhar,
quando me surge, das mãos, um barco desvairado.
Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta
azul impressa nos meus dedos: são os mares
da Odisseia a inundar-me a garganta ;
são citações de Homero oscilando
em meus lábios; são, não sei que aves
marinhas, no estuário das mãos.
Como quem usa a luz para esconder as sombras.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

22.6.08

Memórias de Dulcineia II

Daniel Garber
Ninguém imagina
por quantos lugares
a noite me encontrou
em retirada.
Comecei a ler romances de cavalaria
para não temer o peso da saudade
que se me alojava na alma.
Prendi à cintura o cheiro
do feno e da alfazema
e deixei que as minhas ancas
tomassem a forma dos moinhos,
para que o vento se inquietasse
com a minha sombra.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008